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sábado, 29 de abril de 2006

O sorriso negro de dona Ivone

Por Luís Nassif

Dona Ivone Lara desfilará sua majestade por São Paulo neste final de semana. Mesmo apesar de tia Ciata e das baianas dos anos 20, o samba de morro sempre foi basicamente machista. Houve Clementina de Jesus, é verdade, um furacão que explodiu na música brasileira nos anos 60 e dominou a cena nas décadas seguintes. Mas as cantoras e compositoras, quase sem exceção, eram brancas, classe média baixa, como Aracy de Almeida, ou alta, como Marilia Batista, as duas grandes intérpretes de Noel Rosa, nos primórdios do samba. Toda a seleção posterior de grandes intérpretes das décadas seguintes confirmará a regra.

Nos anos 60, há a notável exceção de Clementina de Jesus, que se torna a grande dama negra do samba de morro. Mas as sambistas que dominam a cena nas décadas seguintes continuam confirmando a regra, de meio brancas, meio mulatas, mas, a rigor, não representando o que se convencionou chamar de negritude. Os anos 70 e 80 são dominados pela mineira Clara Nunes, pela maranhense Alcione e por Beth Carvalho, que se torna a grande referência posterior, mas cuja origem foi a chamada MPB dos festivais. Nos anos 80 surgiram algumas compositoras negras militantes, como Lecy Brandão, mas sem o mesmo sucesso das outras.

Mas nada se compara a dona Ivone Lara, nenhuma sambista branca ou negra, nem sambista homem, nem mulher. É uma deusa, de um lirismo à altura dos maiores sambistas da história.

Dona Ivone é de 1922, estando, portanto, com 83 anos. Como tantos grandes sambistas, nasceu no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. A mãe era cantora de rancho, mas morreu cedo, assim como o pai. Órfã aos 6 anos, dona Ivone foi acolhida por um internato, onde chegou a ter aulas de música com Lucila Guimarães, primeira mulher de Heitor Villa-Lobos. Aos 17 anos, a jovem Ivone foi morar com o tio, chorão, que lhe ensinou cavaquinho. Depois, através do primo Mestre Fuleiro passou a freqüentar a Escola de Samba Prazer da Serrinha. Em 1947 casou com o filho do presidente da Escola. Quando a escola desapareceu, mudou-se para a Império Serrano.

Apareceu para os sambistas nos anos 60. Em 1965, compôs com Silas de Oliveira e Bacalhau “Os Cinco Bailes da História do Rio”, primeiro samba enredo de uma mulher no carnaval carioca.

Para nós, que recebíamos apenas os ecos do samba de morro, ela surgiu em fins dos anos 70, mais precisamente em 1978 quando Gal Costa e Maria Bethania gravaram o clássico “Sonho Meu”, dela e de Délcio Carvalho, seu parceiro mais constante. O segundo grande sucesso foi através do samba “Acreditar” (“acreditar, eu não / recomeçar, jamais”), tbem com Délcio, gravado pelo maior sambista daqueles anos, Roberto Ribeiro, precocemente falecido.

Se não me falha a memória, quando estourou para o público, dona Ivone trabalhava como enfermeira. Descoberta, passou a ser disputada pelos maiores cantores, revelando uma obra extensa, completa. Como compositora, desenvolveu um estilo lírico, próximo dos sambas longos (como Tárik de Souza definia) de Ataulfo Alves, ou de Silas de Oliveira. Como cantora, tornou-se intérprete das maiores, como uma interpretação doce, ao estilo das nossas avós, mas com um timbre de uma doçura inigualável.

A partir de 1996, passou a viajar com freqüência para fora do país. Octogenária, possui uma obra que a coloca ao nível dos maiores sambistas da história. “Mas Quem Disse que eu te Esqueço”, com Hermínio Bello de Carvalho, recebeu gravação antológica de Paulinho da Viola e, mais recentemente, um dueto de matar de dona Ivone e Zeca Pagodinho. “Não chora meu bem”, que mereceu outro duo fantástico dela com Gilberto Gil.

Curiosamente, um dos sambas que ela celebrizou, o preferido do nosso grupo, o “Sorriso Negro” (“um sorriso negro, um abraço negro / traz felicidade”) é de Jorge da Portela e Adilson Barbado, um clássico que celebra a negritude sem o ranço racista dos militantes negros universitários.

Em qualquer roda de samba que se preze, hoje em dia, as canções de dona Ivone estão definitivamente entronizadas, assim como as de Ataulfo, Geraldo Pereira, Wilson Baptista e Paulinho da Viola.

É definitivamente a maior sambista da história.

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