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terça-feira, 17 de maio de 2005

A Lua me disse

Reproduzo abaixo matéria do jornal O Tempo, de Belo Horizonte, sobre a novela a Lua me Disse, onde eu dou meus pitacos sobre as personagens negras e indígena do folhetim. Comentem.


O avesso do avesso


Militantes do movimento negro criticam o perfil das personagens Whitney e La Toya, de "A Lua Me Disse", novela de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa

CINTHYA OLIVEIRA - Jornal o Tempo, Belo Horizonte


Antes mesmo de estrear, "A Lua Me Disse" já dava sinais de que estava disposta a polemizar. Quando a Globo anunciou que a novela das sete — que chegou à sua grade de programação no dia 18 do mês passado — teria duas personagens que rejeitariam sua raça, o movimento negro tratou de ficar de olho nas intenções dos autores, Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa.

Na trama, Anastácia e Jurema, interpretadas pelas atrizes Zezé Barbosa e Mary Sheila, abominam sua origem. Intitulam-se afro-americanas, alisam e clareiam os cabelos e chegam ao exagero de usar pregadores de roupa no nariz para dormir. A negação é tanta que elas se deram novos nomes: La Toya e Whitney, em referência às cantoras norte-americanas (vale lembrar que La Toya Jackson, a exemplo de seu irmão Michael, fez cirurgia para afinar o nariz e durante muito tempo "embranqueceu" sua pele).



Sem perder tempo, os autores instauraram a polêmica já nos primeiros
capítulos, quando Anastácia/La Toya perdeu o emprego numa loja por ter se recusado a atender um cliente negro, assim como ela. "Não me abaixo para preto", alegava. Agora a questão será acentuada, já que as duas irmãs tomarão conta da mansão de Regina (Maitê Proença).

Os militantes do movimento negro preferiram esperar a novela mostrar a que veio, antes de fazer um julgamento. Agora, com pouco mais de 20 dias de exibição, especialistas em teledramaturgia e representantes da luta contra o racismo começam a torcer o nariz.

Contra-reação

Para Marcio Alexandre Gualberto, editor da Afirma — Revista Negra Online, a trama global não reflete a realidade. "Quando os autores da novela resolvem tratar de forma `bem-humorada' o preconceito de negros contra negros estão, na verdade, externalizando (sic) uma contra-reação a todo o debate que as organizações do movimento negro e a militância vêm fazendo em torno da questão das relações raciais no Brasil. O preconceito do negro contra o negro é um dos principais argumentos dos brancos para justificarem, quando tentam, a existência da discriminação racial no Brasil", diz o jornalista e militante.

De acordo com ele, esse tipo de racismo não existe, mas, sim, uma insatisfação do negro motivada por problemas histórico-sociais. "Veja a sutileza da coisa: desde pequenos somos bombardeados por um nível de informação que nos leva a não gostar do que somos. O padrão de beleza é o loiro; o sucesso é refletido no branco, o negro é mostrado como inferior e como tudo o que não presta. Não é à toa que nos anos 70 o movimento negro lutava antes de tudo pelo resgate da auto-estima".

Ridicularização

Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa já previam que suas personagens levantariam tal debate. Em entrevistas à imprensa, os autores sempre disseram que o exagero das personagens fazia parte da estratégia. A conscientização viria no momento em que o público visse o quanto Whitney e La Toya são ridículas.

Por e-mail, os autores comentaram o tratamento de um tema tão delicado em uma comédia. "`A Lua me Disse' é uma novela de humor e acreditamos que, com este formato, a melhor forma de chamar a atenção para um problema é exacerbar suas características. Mas esta não é uma plataforma da novela. Nosso compromisso é levar ao público várias histórias de humor, sem que elas necessariamente tenham sido inspiradas numa causa, numa pessoa ou numa história específica. A trama que envolve as personagens de Latoya e Whitney é apenas uma entre tantas outras que fazem parte da novela."

Miguel e Maria Carmem também defendem as personagens: "As irmãs são vaidosas sim, gostam de se cuidar, de se vestir bem e de ter acesso a coisas que as deixam felizes. E quem não quer isso? Apesar de ter pouco dinheiro, a dupla usa os recursos disponíveis para dar voz à sua vaidade e para seguir modismos. Se não têm dinheiro para ir ao salão, elas mesmas dão um jeito nisso".



A atriz Zezé Barbosa, que sempre fez questão de frisar o quanto se
orgulha de suas origens, diz que o tom exagerado dado pelos autores poderá despertar os telespectadores para a questão. "Saí para passear em Copacabana e vi várias La Toyas e Whitneys na praia. Elas fazem uma franjona lisa, pintam o cabelo de loiro ou castanho. Cheguei a ficar meio chocada com isso. O bacana das personagens do Miguel é que são bem populares e conseguem levar para a TV o que existe nas ruas", afirma a atriz.

Autores devem enfrentar a Justiça

Whitney e La Toya não são as únicas personagens a levantar discussões Brasil a fora. Semana passada, veiculou na imprensa uma nota de repúdio assinada por entidades do Mato Grosso contra a forma com que Índia (vivida por Bumba) é retratada na novela. Na trama, ela é uma empregada maltratada pelos patrões. A nota diz que "a índia Nambiquara, na caricatura da novela, está condenada ao extrato mais subalterno da sociedade, quase como se fosse um animal exótico, divertido, digno de riso. Uma imagem que não é totalmente alheia à nossa realidade, onde o preconceito legitima a exploração, a expropriação e o abandono do poder público. Cabe à televisão brasileira o importante papel de educar, todos sabemos. De um autor/ator respeitado pelo seu público (Miguel Falabella) esperamos mais do que a confirmação de idéias e valores que os povos indígenas lutam tanto para superar, nas suas mais variadas formas de discriminação das diferenças."



Valores

Para o editor da revista Afirma, Marcio Alexandre Gualberto, é incompreensível como as atrizes que interpretam Whitney, La Toya e Índia possam concordar com a linha traçada pelos autores. "A novela é de um mal gosto atroz. A figura da índia é horrorosa, as duas irmãs ridículas. Mas sabe o que é o pior, é que as profissionais em questão se submetem a um papel desses. Nós, jornalistas, temos nossos limites éticos e há coisas que não faríamos por nos violarmos como pessoas e profissionais. Por que esses profissionais não sentem isso?", diz Gualberto.

Segundo Regina dos Santos, fundadora do Fórum Nacional de Comunicação contra o Racismo e presidente da ONG Dombali, em várias localidades do país estão sendo estudadas a representação do negro dentro de "A Lua Me Disse" e alguns militantes já planejam entrar com processos na Justiça. "Com esses personagens, mais uma vez a Globo diz a que veio: sempre dividir (as raças) e mostrar o contrário (da realidade). A população negra está revoltada e isso só vai mudar quando houver moralização por parte da mídia".

Posição desagradável

A maneira extremamente caricata com que as personagens La Toya e Whitney estão sendo construídas não tem agradado a vice-coordenadora do núcleo de telenovelas da ECA/USP, Maria Lourdes Motter. Ela acredita que os autores têm total liberdade para tratar a questão racial, mas a maneira escolhida é arriscada. "Acredito que seja intenção deles transformá-las em personas caricatas. Parece-me que vão tratar da questão racial de duas maneiras, mostrando uma personagem que parte para ação afirmativa e exige respeito (Violeta, vivida por Isabel Fillardis), e o outro lado, preocupado com o branqueamento. Isso acaba ficando ridículo e objetivo deve ser esse, chocar e divertir, ao mesmo tempo", diz a professora.

Mesmo entendendo o objetivo do autor, Maria de Lourdes diz estar se sentindo um pouco incomodada — chega a contar que La Toya e Whitney já estão ficando um pouco cansativas — e acredita que os negros estejam numa posição desagradável ao assistir à novela. "É possível mostrar o preconceito e dizer que isso é algo ruim, que causa sofrimento e exclusão. Existem várias maneiras de fazer isso, mas a escolha é do autor". A professora diz ainda que não duvida que a controvérsia esteja sendo implantada para levantar a audiência do horário. "Em geral, as polêmicas dão amplitudes interessantes para as telenovelas. A mídia divulga a polêmica e todos vão conferir para ter uma posição sobre o assunto".

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