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segunda-feira, 20 de março de 2006

Dia Internacional de Luta Contra a Discriminação Racial

www.Um dia só não basta

Marcio Alexandre M. Gualberto*

Onde você guarda seu racismo? A pergunta é o mote de uma campanha conduzida por organizações da sociedade civil como Ibase, Geledés, Fase e Criola, entre outras. Não existe apenas uma resposta para ela e as formas de escapar a respondê-la também são variadas. No entanto, não há como negar que, de uns anos para cá, as pessoas têm demonstrado, mais do que guardado, seu racismo. Hoje, a questão étnico-racial permeia debates pelo mundo. Paradoxalmente, quanto mais se debate o tema mais ele se torna visível por meio de agressões ou casos de constrangimento.

Em pouco mais de um ano, dois casos de racismo em gramados brasileiros deram a dimensão de uma questão que sempre esteve latente, mas pouco visível em nossa realidade de futebol campeão do mundo: um argentino chamou o jogador Grafitti de macaco e, recentemente, jogador de um time do Rio Grande do Sul, alisando a própria pele, fez referência ao fato de o jogador que provocou sua expulsão ser negro.

Há ainda o caso do técnico e jogador campeão pela seleção de 1970, Carlos Alberto Torres, ter se referido a um árbitro de futebol como "preto de merda", quando ele mesmo é, aqui e em qualquer lugar do mundo, um homem com estereótipo negróide. O fato nos leva à delicada questão da gradação de cores no espectro brasileiro. Quanto mais clara a pele da pessoa, menos refém está da lógica discriminatória que nos rege. Do lado oposto, quanto mais escura a pele, mais constante é a relação da pessoa com casos de discriminação racial, seja por parte de pessoas brancas, seja por parte das que se acham brancas.

No marco do Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, instituído pela ONU, temos que refletir sobre a problemática mundial do racismo. O que se dá nos campos de futebol é reflexo do que ocorre no cotidiano dos países europeus e em nosso próprio país. O mundo está se tornando cada vez menor e mais competitivo. Não haverá espaço para todas as pessoas no mercado de trabalho, nas escolas, nos postos avançados da economia e da política; alguém vai sobrar. E em uma lógica de acomodação, movimentos já começam a ser feitos para estabelecer quem sobra e quem segue usufruindo melhor qualidade de vida, um padrão mais digno de existência.

É possível crer que dias piores virão. Que as lógicas racistas e xenofóbicas estarão cada vez mais imbricadas, provocando conflitos tais como os vistos recentemente na Austrália, onde milhares de jovens brancos(as) passaram a atacar indiscriminadamente árabes, negros(as) e latinos(as).

Em contrapartida, a reação das pessoas discriminadas, excluídas, não tarda a chegar, como demonstraram os episódios ocorridos nos subúrbios franceses poucos meses atrás. Imaginar que ação e contra-reação começam a surgir em vários pontos do mundo significa pensar que, fatalmente, chegaremos a um nível de conflagração em que a origem e a cor da pele serão diferenciais básicos para a constituição de alianças ou para a potencialização de conflitos.

Urge, portanto, a enérgica ação do teatro das nações para impedir que este cenário pavoroso se torne realidade. Às Nações Unidas não basta apenas instituir um dia e deixá-lo solto ao sabor das circunstâncias, sendo lembrado apenas pela sociedade civil. Necessário se faz que ações concretas de luta contra a discriminação racial sejam levadas a cabo pelas grandes potências e pelos organismos internacionais.

Ações voltadas para a educação e a convivência pacífica entre pessoas diferentes são passos fundamentais para se iniciar ações concretas neste campo. De semelhante modo é mister que os organismos internacionais apóiem iniciativas que visem a inclusão de grupos tradicionalmente discriminados e, concomitantemente, ampliem o apoio a países pobres que têm como origem fundamental de sua miséria o processo de colonização sofrido por países europeus no passado.

Palavras como "políticas afirmativas" e "reparações" devem começar a ser ditas e encaradas por autoridades políticas internacionais e nacionais como essenciais não só para ampliar a participação de grupos vulneráveis nas esferas de poder, como devem ser vistas como estratégicas para o desenvolvimento da sociedade de nosso país.

O que não é mais possível é fechar os olhos a uma realidade que teima em bater à nossa porta, que invade nossas casas via TV e jornais e que se torna cada vez mais cotidiana. Não podemos mais aceitar como normal que um coronel PM em um jogo de futebol faça referências racistas a um árbitro que lhe chamou a atenção; não podemos aceitar como normal que igrejas invadam terreiros de candomblé ou que jovens bem-nutridos se divirtam incendiando indígenas em bancos de pontos de ônibus.

Um dia só não basta para enfrentar esta realidade. Muito menos um ano ou uma década. O bispo metodista argentino Federico Pagura tem uma frase maravilhosa que diz: " ter esperanças é sentir saudades do futuro". É isso que precisamos fazer neste 21 de março. Imaginar que o futuro precisa ser melhor, que precisamos agir para construir um país melhor, mas, também, um mundo melhor.

O Brasil é referência para muitas coisas, entre elas o convívio harmônico entre grupos étnicos diferentes. Só sendo indígena ou negro(o) para saber que a realidade não é tão cor-de-rosa. Mesmo assim, o ódio racial ainda não é algo tão presente em nossa realidade, é a hora de aproveitarmos isso a nosso favor e iniciarmos saltos reais rumo à construção de uma harmonia que se dê com oportunidades iguais para as pessoas negras e indígenas.

Assim, a utopia da democracia racial poderá virar realidade. Quando um determinado grupo étnico está na base da pirâmide e outro no topo é sinal de que algo está errado com a democracia. Então, é chegada a hora de mudar. E é isso que propomos como sociedade civil: profundas mudanças na relação entre brancos(as) e não-brancos(as). Sem isso, continuaremos patinando nos discursos, nas boas intenções, mas, teremos poucas ações práticas.

Onde você guarda seu racismo?
– Aproveite o 21 de março para se fazer esta pergunta.

*Jornalista, editor do blog Palavra Sinistra (http://palavrasinistra.blogspot.com), colunista de Afropress (www.afropress.com.br) e do portal do Ibase.

Publicado em 20/03/2006, no Portal do Ibase

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