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sexta-feira, 31 de março de 2006

Compartilho com vocês a sempre lúcida opinião de Cunca Bocayuva, diretor da Fase, a respeito dos fatos recentes na política nacional.


OS APRENDIZES DE FEITICEIRO E A MORBIDEZ POLÍTICA

Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
Diretor da FASE

O cenário de aniquilamento da credibilidade dos ministros mais poderosos na era Lula parece ser o resultado lógico da continuidade do processo de crise de hegemonia. A insuperada contradição entre a revolução das demandas democráticas e o quadro de reprodução das lógicas de concentração de renda e poder interno ajustados aos condicionamentos globais produzem um efeito perverso: uma contínua tentativa de liquidar a política como caminho para a ampliação da democracia.

A queda dos aprendizes de feiticeiros é resultado do mesmo arrivismo por eles adotado, seu desejo de usar os mecanismos do poder dominante e as posições obtidas para reproduzir-se no poder, perdendo de vista seus compromissos com o processo democrático constituinte que resultou na Constituição programática de 1988. A continuidade dos velhos fenômenos de cretinismo parlamentar, corrupção e manipulação se dá enquanto o novo não se traduz em formas adequadas de organicidade política. A agenda comum das mudanças sociais contra as desigualdades foi solapada pelo duplo movimento, de reestruturação econômico social do capital e de mercantilização e espetacularização da política, acelerados pela nova dinâmica de acumulação inscrita na agenda Collor da fuga para adiante, via privatização. A desestatização pela via da desconstrução do espaço público emergente faz essa triste combinação de perda de bases sociais organizadas pelo trabalho com o declínio da esfera pública.

Os avanços parciais no combate à pobreza e nas políticas afirmativas não alcançaram a força civilizatória necessária para a ampliação da democracia substantiva, dada a continuidade de uma agenda regressista baseada no economicismo e na mercantilização acentuando o aspecto de degradação da política pela crise permanente da representação. A dinâmica da vida cotidiana e a acumulação ilimitada de capital no ambiente financeirizado naturalizaram a apropriação dos fundos públicos para os objetivos do ajuste estrutural permanente. A vitória da economia política do capital barra a transformação da estrutura econômica e social iníqua e produz conflito e violência indiscriminados na base da sociedade que vive entre a sobrevivência e a precarização. O que garante de maneira precária a continuidade das formas de apartação social.

José Dirceu com seus intentos de reestatização da política através de uma “mexicanização” retardatária e Antonio Palocci com seu ímpeto de fazer o dever de casa se consumiram na mesma pequenez política que caracteriza os seus adversários. Os mesmos que acenam com a bandeira da moralidade frente aos holofotes do poder da mídia e deixam de enfrentar a agenda da reforma da política, já que esta é impossível sem uma base de inclusão e integração social no mundo da produção e da cidadania.

Encontrar o fio da meada da política orgânica, das grandes políticas distributivas e de participação que lançariam as bases da democracia de massas, superando o individualismo predatório do capitalismo selvagem, é um desafio complexo. A questão eleitoral fica novamente prisioneira do sentido plebiscitária, entre o voto de protesto e o voto útil para os que desejam a mudança social. Entre a continuidade das tênues esperanças alimentadas nos quase-programas sociais do governo Lula (com êxito parcial na redistribuição direta e o fracasso na ampliação dos direitos sociais via políticas públicas permanentes) e a vingança raivosa das velhas elites que querem retomar as redes do governo para dirigir de forma clara a continuidade do regime de apartação sócio-territorial.

Independentemente das opções eleitorais e dentro do quadro de fragmentação partidária, para além das manipulações dos processos e batalhas pelo poder que fazem parte do espetáculo político, o problema do ator social coletivo de mudança depende de uma nova cultura de direitos. A desnaturalização dos contextos discursivos e práticos gerados pela antipolítica depende da superação da agenda Collor. A superação do caráter autoritário do Estado, a superação do patrimonialismo e da estrutura de concentração de renda, propriedade e poder dependem menos de uma nitidez retórica da retomada da coerência formal-abstrata.O marco ético-político da progressão da democracia depende de uma dupla articulação: entre o programa democrático constituinte de 1988 e o impulso das demandas por mudança por parte das grandes maiorias sociais, através de uma agenda comum cujo centro está no trinômio: renda básica cidadã, função social da propriedade e participação e controle público sobre os rumos do Estado. O país necessita construir a base material e jurídico-política que dê suporte à luta pelos direitos individuais e coletivos. Precisamos fortalecer as dinâmicas de ação subjetiva e objetiva do processo de democratização, dentro de um contexto intelectual e moral de revolução pelos direitos. Trata-se da urgente redefinição de prioridades, com uma nova relação de transparência: aquela que depende de uma correta relação entre meios e fins.

A racionalidade desse processo que retoma as bases de mediação legal, que retoma a publicização do Estado e que interfere nos rumos e na nitidez das bases programáticas dependerá de um esforço de educação e organização popular, de mobilização democrática e produtiva, de um novo federalismo e da animação da inteligência coletiva. Os desafios de escala dos problemas nacionais em matéria de desigualdades, segurança e meio-ambiente só podem ser redefinidos pela ação integrada e cooperativa das forças sociais e políticas, garantida a autonomia e a pluralidade, atuando de forma direta no âmbito dos conflitos e contra as desigualdades a partir dos territórios. Os experimentos de governos municipais no passado recente deram mostra das possibilidades criativas para definir novos modos de governar. Os governos municipais e estaduais devem ser os protagonistas de um novo agenciamento de estratégias de reorientação do desenvolvimento na cotidianidade, na proximidade, nos territórios, através de novas esferas públicas.

O governo federal deve garantir as políticas básicas e o equilíbrio entre as regionalidades, de modo a que possamos alcançar uma dinâmica de mudança social desde os consórcios e articulações intermunicipais que vá gerar uma reconstrução nacional com base na construção de novos dinamismos sócio-territoriais. Os fundos públicos e as políticas nacionais devem garantir as bases para que os aspectos de universalidade e os direitos comuns se ampliem e que as potencialidades das diferenças sejam melhor aproveitadas. Tudo isso poderá reequilibrar saberes, fortalecer as autonomias e a cooperação horizontal, fazendo com que o primado da democracia seja sustentável pela complexidade de uma sociedade de caráter continental, que deve combinar sua condição multilateral e sua vocação interamericana com uma dinâmica ativa de reestruturação social baseada na justiça redistributiva.

A queda de Palocci e o afastamento de Dirceu terão sido inúteis se servirem apenas para uma restauração plena dos responsáveis pela agenda patrimonial privatizadora. As quase-mudanças operadas pela redistribuição serão anuladas no médio prazo. Os retrocessos derivam da insistência na reciclagem do velho, o que vale tanto para uma esquerda “estadólatra” quanto para uma direita “mercadólatra”. A relação entre a pequena política e sua mercantilização serve apenas de cobertura para a naturalização fetichista da reciclagem dos mecanismos de acumulação. Se a sociedade brasileira render-se a uma ditadura dos fatos, sem reconstruir o argumento e roteiro da via democrática, o resultado da crise atual será mais uma vitória perversa dos movimentos mórbidos que podem levar a uma restauração plena da supremacia do velho bloco de governo. Neste caso, o poder das elites terá sido reciclado pela sua adesão ao processo de reestruturação.

A dinâmica ético-política da mudança deve se articular com a forma jurídica estabelecida pelo processo constituinte democrático. Através da agenda comum a construção da alternativa política democrática deve resultar de um esforço de transformação das plataformas de demandas em programa orgânico, cuja execução dependerá da identificação dos pontos fortes de concretização da justiça social e da metodologia de mobilização dos atores baseada nas redes sociais de colaboração, nas novas esferas públicas e na atuação direta sobre os territórios, com vistas a uma ruptura com a estrutura da apartação social.

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