Páginas

terça-feira, 12 de junho de 2007

Bombadeira - Entrevista com Luís Carlos de Alencar

Reproduzo abaixo entrevista com Luís Carlos de Alencar, diretor do filme Bombadeira, que conta um pouco do universo que circunda o mundo das travestis, aplicações de silicones e as consequências disso tudo.

Luís Carlos de Alencar é baiano de Salvador, tem 29 anos e mora no Rio de Janeiro desde 2003. É pós-graduado em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio e atualmente trabalha na Casa de Criação, ao lado do cineasta Joel Zito Araújo. Em seu currículo estão diversos filmes, entre os quais destacam-se a direção do documentário Maré de Março, realizado sob encomenda para o Movimento Nacional de Direitos Humanos; a assistência de direção do documentário Ira, premiado com menção honrosa do Júri do Cinesul 2005; o roteiro e a direção do curta-metragem É Tarde, vencedor do prêmio de Melhor Roteiro da mostra Vídeo-off; e a direção e o roteiro do documentário Mulheres do Cacau, produzido pelo Centro de Estudos e Ação Social-Bahia e exibido na Itália, Suíça e Holanda.

Como surgiu a idéia do documentário?
Luis Carlos de Alencar - Eu fui estagiário numa instituição em Salvador que atuava na defesa de direitos humanos e grupos sociais discriminados por sua sexualidade. Um destes grupos foi o das travestis de baixa renda, aquelas que vão pra batalha na pista do centro da cidade, Av. Sete e Carlos Gomes. Tive contato quase diário durante dois anos com muitas travestis e pude acompanhar suas realidades de perto. Desde problemas mais terríveis como violência policial, o preconceito, problemas de saúde e de moradia etc., até questões mais cotidianas como seus sonhos, discriminação familiar, relacionamentos amorosos, religião, fofocas etc.
Foi nesse período que conheci e convivi com uma das maiores preocupações delas: o corpo. Não falo do corpo como vaidade, no seu sentido mais comum. Mas do corpo como afirmação de si mesmas. Muitas delas, mais do que serem belas, queriam se ver e serem vistas com um corpo feminino e faziam isso a qualquer custo. Foi então que me apresentaram à figura da bombadeira e reconheci na bombação algo muito maior do que uma mera agressão ao corpo pela qual muitas morriam. A bombação é a própria afirmação da vida para a travesti. É um dos fundamentais momentos de sua história, quando então alcançavam pela primeira vez um sonho. Aquilo precisava ser filmado, aquele outro enfoque tinha que ser mostrado. E aí começamos a ouvi-las.
Como foi o trabalho de pesquisa?
Difícil. Primeiro comecei a pesquisar jornais, revistas, livros e artigos acadêmicos. Encontrei poucos textos e todos associavam a prática da bombação ou a figura da bombadeira à marginalização por causa das travestis que morriam ou ficavam com seqüelas devido aos problemas decorrentes da aplicação clandestina do silicone industrial. Não havia nenhuma outra ponderação sobre o tema. Investiguei também se existia alguma informação histórica sobre a chegada do silicone e de suas aplicações no Brasil. Nada. Todas as informações mais importantes que colhi foram dadas pelas próprias travestis, pela história oral que passam adiante. Aliás, como também é o aprendizado de aplicação dos silicones por elas. A cultura oral é muito forte entre as travestis.

Como você conheceu as meninas do filme e como foi a relação com elas?
Algumas das travestis e transexuais do filme eu já conhecia através da ONG em que trabalhava. Uma delas, a Andrezza, personagem do filme, me apresentou às demais. Priorizamos algumas. A relação no início, como era de se esperar, foi um pouco distante e desconfiada. Aos poucos, fomos nos acostumando e tudo fluiu com maior naturalidade possível. As conversas que durariam normalmente uma hora facilmente chegaram a duas ou três por dia. Os temas se multiplicaram aos borbotões. Os depoimentos transformaram-se em conversas, trocas, algo mais livre. O compromisso de nossa produção e o papel de Andrezza como intermediária foram decisivos para os encontros, mas a necessidade de narrar, de serem ouvidas, que elas possuem garantiu o substrato que tem o documentário.
Vocês passaram por alguma situação curiosa durante a filmagem?
Usualmente, a imagem espacial que acompanha as travestis é a da rua, da pista, da boate etc. Como o documentário trata de algo pessoal, carne, pele, sensibilidade e corpo, optamos por conhecer com a câmera os espaços muitas vezes evitados como o da casa, da intimidade, da pessoa. Por isso buscamos enxergar o espaço doméstico, suas relações afetivas, seus afazeres cotidianos, cozinha, quarto etc. E se o foco são aquelas de baixa renda, sabíamos que encontraríamos problemas de acesso. Tomamos algumas precauções como reduzir a equipe e os equipamentos, mas em quase todos os casos passamos por apertos.
Uma das entrevistadas mora num cortiço — ou no que restou dele — onde na entrada funciona uma boca-de-fumo, onde se vende crack. Além de termos que pedir autorização para os boqueiros (traficantes), uma vez, no térreo do sobrado, tivemos que pedir literalmente licença para os usuários, que fumavam a pedra e separavam dezenas de outras na precária escada em que subíamos. Eu orava aos deuses para que minhas pernas não tropeçassem. Já pensou se eu ou alguém da equipe pisasse nas pedras de crack? Enquanto não chegamos ao quarto da travesti, eu não sabia o que poderia acontecer. Aos poucos, compreendendo mais a dinâmica do local, apesar de ser uma boca-de-fumo, percebi o quanto meu distanciamento daquela realidade havia produzido imagens um tanto exageradas.
Os boqueiros eram apenas um ou dois, os outros que eu também julgava como tais eram rapazes que moravam no cortiço e estavam apenas bebendo cerveja e papeando antes de subirem aos seus quartos. E os usuários, esses não passavam de um apenas. Os demais foram criações de minha imaginação (risos). Ele fumava e dividia as pedras em papelotes para, provavelmente, vendê-las. Qual foi a minha surpresa que, apesar de vê-lo como perigoso, ele nos ajudou com sua vela — a que esquentava a colher — e nos guiou até a saída quando terminamos as filmagens. Descobrimos depois que ele era o marido tímido da travesti, que não nos daria entrevista. Enfim, nós havíamos adentrado um sobrado onde várias famílias moravam. Foi isso.

Como é a relação das meninas do filme entre si? Elas se conhecem e se relacionam?
Todas se conheciam. Umas se davam bem com outras. Algumas tinham problemas com outras. Enfim...

Qual foi a maior dificuldade em produzir Bombadeira?
Houve diversas dificuldades. A primeira, eu estava no Rio. Tive que articular apoios na Bahia. Segundo, eu estava me envolvendo em algumas produções por aqui que me tomavam tempo. Terceiro, a falta de dinheiro. Rodei uma primeira fase toda a partir de um empréstimo. Um ano depois, consegui o patrocínio para a finalização e filmamos uma segunda rodada com as travestis, com poucos recursos, mas já algum. Daí veio o quarto problema, na verdade, o aspecto trágico do nosso trabalho: nem todas continuavam vivas.

Você é da Bahia. Como veio parar no Rio? Conte um pouco da sua trajetória profissional.
Sou formado em Direito e durante o curso sempre me envolvia em filmagens. Ora por iniciativa própria ou mesmo em projetos de extensão universitária junto a movimentos sociais, onde sempre dava um jeito de encaixar o vídeo como instrumento dentro dos projetos. Vivi essa dicotomia de vídeomaker versus ativista jurídico durante os seis anos do curso. Já havia até a possibilidade de desenvolver um projeto com certa associação de trabalhadores rurais da Bahia na área da arte e educação, mas não queria viver essa punheta de nem fazer uma coisa nem outra muito bem. Sabia que iria chegar o momento de ter que assumir um caminho prioritariamente.
Com o apoio de meu avô e de sua esposa que já moravam aqui, resolvi entrar no ônibus Salvador-Rio. Se na Bahia fiz diversos trabalhos videográficos vinculados a movimentos sociais, com caráter institucional, no Rio comecei a estudar e realizar projetos mais autorais, sejam meus ou de amigos que fui conhecendo. Considero Bombadeira meu primeiro trabalho mais autoral como diretor.
O filme já foi exibido no Cineport e em Salvador. Como tem sido a reação da platéia frente a um tema tão polêmico?
O filme tem sido bem recebido. Na pré-estréia, na Bahia, houve sessão extra, com lotação esgotada. Nossa maior preocupação foi com as cenas de bombação. Evitamos ultrapassar o limite entre a imagem de impacto que deve ser mostrada e a apelação. É como harmonizar isso com a idéia maior que seria a tentativa de aproximação do público-médio que assistiria ao filme e a realidade das travestis de baixa renda de salvador.
Qual foi a impressão que as meninas tiveram do filme? Elas gostaram de se ver no telão?
Melhor sabermos de uma delas: “o filme retrata um universo Trans nunca antes mostrado, pelo menos em Salvador, fala de amores, famílias, preconceitos e de discriminação. Registra os relatos e as histórias de vidas pessoais de pessoas Trans. Em tudo é perfeito pois mostra as Trans como sujeitos de direito, com amores, sonhos e perspectivas de futuro. É um filme emocionante quando retrata a vida de casais entre as Trans e os seus parceiros e da emoção de um parceiro de trans após perder o grande amor da sua vida. É dificil não se emocionar com o depoimento final de Emanuel para Michelle, após a morte da mesma. (...) Também podemos observar que as Trans foram mostradas como pessoas comuns dentro de uma sociedade incomum e que foi muito pertinente a mostra dessas pessoas no final com perspectivas de futuro como Samara que termina no Colégio Antonio Vieira estudando para se formar em veterinária e saindo do chavão “Trans Marginalidade ou Prostituição”. Muito forte as cenas da bombação (...) é muito forte o processo de conclusão da aplicação de silicone industrial e a moldagem das formas. É um filme excelente e recomendável para quem quer conhecer um pouco mais da vida cotidiana de Travestis e Transexuais, as trans que aparecem também são pessoas comuns que encontramos todos os dias em nosso quotidiano, o diretor não quis mostrar trans inimagináveis. A credito que isso servirá de impulso para demais produções.”
Depoimento de Keila Simpson, presidente da ATRAS (Associação de travestis e transexuais de Salvador) para o Portal Marccelus - http://portal.marccelus.com/
As cenas do documentário são fortes e realmente impressionam. Você já tinha assistido a uma bombação antes do filme?
Não. Nunca havia assistido. Sabia de todo o procedimento de tanto que elas me contavam. As cenas são tão intensas quanto o prazer da travesti bombada quando se vê no espelho, transformada. A parte que mais impressiona, definitivamente, é no fim da bombação, quando se massageia a região aplicada com muita força. Parece doer muito. Dor e alegria se misturam no óleo. Aliás, todo o processo é impressionante na medida em que você assiste paulatinamente o corpo ganhando nova forma, ali, bem de baixo de seus olhos.

Assistindo ao filme, percebemos que a bombação é uma grande mudança na vida de uma travesti. As que não se bombam são discriminados pelas demais? Existe um preconceito? A bombação pode ser considerada como um processo de aceitação?
O que o filme retrata é justamente isso: a vontade de se afirmar para os demais e para si, através do corpo. O desejo de se expressar pelo corpo – que todos nós temos. Isso para as travestis é fundamental. Mas existem aquelas que, por medo, pela falta de oportunidade ou até mesmo pela miséria absoluta, nunca conseguiram modificar o corpo. O que une todas essas circunstâncias é a falta de política de saúde pública que contemple as demandas desse grupo social.

Outras informações:

FESTA DO DOCUMENTÁRIO BOMBADEIRA - A DOR DA BELEZA
25 de junho, segunda-feira, às 19h

Local: Teatro Rival – Rua Álvaro Alvim 33, Cinelândia
Com exibição do filme, com o DJ Cleo e distribuição de preservativos Hora H

Credenciamento de imprensa:
Catharina Rocha – Máquina de Escrever Comunicação
21 2587 2402 / 9205 8856 :: http://br.f329.mail.yahoo.com/ym/Compose?To=catharinarocha@terra.com.br

Um comentário:

Anônimo disse...

boa tarde eu gostaria de ver uma aplicaçao de silicone industrial em alguem,vc tem algum site para indicar? uma vez deu no programa do ratinho mas até agora eu nao achei.