Páginas

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

Para além da primeira página

Para além da primeira página - O que o Jornal Nacional e a Folha de S. Paulo omitiram e o que Instituto Datafolha investigou

Por Wânia Sant´Anna

A abordagem feita pelo Jornal Nacional, em 22 de julho, e pelo jornal Folha de S. Paulo, em 23 de julho, da pesquisa de opinião dos brasileiros a respeito do Estatuto da Igualdade Racial e a política de cotas nas universidades reafirma, definitivamente, a má fé e a prática de manipulação dos grandes meios de comunicação no tratamento dos direitos da população negra do país.

O mais grave exemplo desta manipulação está no fato dos dois veículos de comunicação terem omitido que a pesquisa de opinião sobre esses assuntos estava combinada a uma sondagem sobre a intenção de voto nos três principais candidatos às eleições presidenciais – Lula, Geraldo Alckmin e Heloisa Helena. Isso mesmo! O Jornal Nacional e a Folha de S. Paulo simplesmente cortaram essa dimensão da enquete.

Como ficamos sabendo disso? Muito simples. O editor do jornal Ìrohìn nos pediu para fazer comentários sobre os resultados da pesquisa do Datafolha. Afinal, frente a todo o massacre da mídia contras as cotas para afro-descendentes nas universidades, é de grande relevância ter comprovado que a maioria da população brasileira, 65%, é favorável à medida. As informações veiculadas no Jornal Nacional e Folha de S. Paulo eram, claramente, insuficientes para uma avaliação mais detalhada.

No caso do Jornal Nacional, a intenção mais explícita era “detonar” com a proposta do Estatuto da Igualdade, jogando tintas fortes no fato de apenas 9% dos entrevistados estarem bem informados sobre o Estatuto e esmaecendo o fato de 46% mencionarem ter tomado conhecimento de sua existência. A Folha de S. Paulo “poupava” discretamente o Estatuto, mas também não deixou de enveredar pelo argumento do “desconhecimento” da população sobre esse assunto, e o seu interesse principal ficou em torno das cotas nas universidades, minimizando a opinião favorável da maioria ao destacar que entre os mais escolarizados e de maior renda a posição era contrária a essa política. O interesse da Folha foi o de polarizar o debate – ou seja, contrapor a política de “cotas raciais” às “cotas sociais”. Assim, e não por acaso saíram atrás dos “analistas”, e leia-se nenhum ativista de organização negra, para opinar sobre uma e outra proposta – cotas raciais versus cotas sociais.

Enfim, diante da suspeita de que havia algo de parcial na divulgação da pesquisa, parti para a fonte da informação: o Instituto Datafolha. O que teria sido, realmente, investigado pelo Datafolha? Disponibilizar recursos para uma pesquisa de opinião nacional nos moldes seguidos pelo Instituto já era algo a ser comentado, e não parecia crível imaginar que eles não tivessem descido a detalhes sobre esse assunto. Bingo! Estava certa, a pesquisa era muito mais ampla e as omissões muito mais graves.

Logo no primeiro parágrafo do texto de divulgação da pesquisa e elaborado pelo Instituto Datafolha lê-se, exatamente, o seguinte: “A maioria (65%) do eleitorado brasileiro é favorável de que 20% das vagas em universidades públicas e particulares sejam reservadas para pessoas negras e descendentes de negros, como prevê um dos capítulos do projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que vem sendo discutido no Congresso, revela pesquisa realizada pelo Datafolha. Um quarto dos eleitores (25%) é contra as cotas para negros nas universidades”. Os grifos são nossos e estão aqui colocados para comprovar a má fé e a prática de manipulação dos meios de comunicação. O assunto é tema de agenda eleitoral e isso não parece ter sido omitido por lapso editorial. Em véspera de eleição, de alguma forma, tudo o que diz respeito ao comportamento e pensamento dos eleitores merecem atenção. E um assunto como esse não tem perfil para ser deixado de lado. Deixá-lo de lado não é omissão é decisão.


O que pensa o eleitorado brasileiro sobre as cotas nas universidades
A preocupação em apurar a opinião de eleitores demonstra que o assunto está na agenda eleitoral e assumiu, definitivamente, contornos nacionais. Pela pesquisa ficamos sabendo que entre os entrevistados que pretendem votar em Lula, 69% são favoráveis às cotas para negros nas universidades, 21% são contra, 4% são indiferentes e 7% não sabem – ou seja, não emitiram opinião a respeito. Entre os eleitores de Geraldo Alckmin, 66% são favoráveis às cotas, 29% são contra, 3% são indiferentes e 2% não sabem. Entre os eleitores de Heloisa Helena – aproximadamente 10% do eleitorado nacional – 56% são a favor, 28% são contra, 3% são indiferentes e 2% são não sabem. Entre os eleitores que declararam votar nulo ou branco, 56% são a favor, 38% contra, 4% são indiferentes e 2% não sabem.

Assim, a manchete de primeira página da Folha de S. Paulo, na edição de domingo, escondeu o essencial: que o eleitorado brasileiro, seja qual for a sua opção, atual, de voto não acredita que as cotas para negros nas universidades dividam o país. Essa informação talvez tenha inspirado o Presidente e candidato Luiz Inácio Lula da Silva a fazer, em Olinda, e já na segunda-feira, 24 de julho, a defesa do sistema de cotas, “Quando a gente começa a discussão das cotas, os que são contra, são por preconceito”. E indo mais além, acrescenta, “A gente vai em banco e não vê gerente negro, a gente não vê um dentista, um médico negro. A gente não vê na maioria das profissões uma pessoa negra”. (“Presidente acusa de preconceito os contrários a cotas”, FSP 24/07/2006) Mas por que é que o Presidente introduziu o debate sobre mercado de trabalho? Ele teria feito isso apenas para destacar a necessidade de profissionalização da população negra?

Talvez, sim. Porém é aqui, neste assunto, que surge uma outra incrível manipulação na divulgação dos resultados da pesquisa. O Instituto Datafolha também investigou a opinião do eleitorado sobre cotas nas empresas públicas e privadas, nos seguintes termos: “O Estatuto da Igualdade Racial prevê que sejam reservadas no mínimo 20% das vagas nas empresas públicas e privadas pra pessoas negras e descendentes de negros. E você é a favor ou contra que sejam reservadas vagas nas empresas para negros e descendentes de negros?”

E, também, neste assunto o eleitorado é francamente favorável às cotas para os afro-descendentes no mercado de trabalho. Entre os entrevistados que pretendem votar em Lula, 71% são favoráveis às cotas para negros nas universidades, 19% são contra, 4% são indiferentes e 6% não sabem. Entre os eleitores de Geraldo Alckmin, 69% são favoráveis às cotas, 27% são contra, 3% são indiferentes e 2% não sabem. Entre os eleitores de Heloisa Helena 62% são a favor, 35% são contra, 2% são indiferentes e 1% são não sabem. Entre os eleitores que declararam votar nulo ou branco, 58% são a favor, 32% contra, 5% são indiferentes e 2% não sabem. Ou seja, os percentuais de aprovação são, em todos os casos, até ainda mais elevados se comparados às maiorias expressivas de posições favoráveis às cotas nas universidades.

No entanto, o assunto não foi sequer considerado pelo Diretor Geral do Datafolha, Mauro Paulino, ao comentar a pesquisa na própria Folha de S. Paulo, “Necessidade de informação”, na edição de domingo, 23 de julho. O interesse do Diretor esteve concentrado em afirmar que “apenas um em cada dez brasileiros considera-se bem informado sobre o projeto de Estatuto da Igualdade Racial em tramitação no Congresso”, que “a ampla maioria (78%) concorda, mesmo que em parte, que as ‘as vagas nas universidades devem ser ocupadas pelo melhores alunos, independente da cor, raça ou condição social’”, e, finalmente, que “a pesquisa demonstra que a falta de informação é terreno fértil para se trabalhar os conceitos do tema. A maneira como esses conceitos serão comunicados e debatidos, principalmente nos veículos de comunicação, será determinante a partir daqui no posicionamento dos brasileiros sobre a questão. É papel das pesquisas acompanhar e revelar eventuais mudanças nesse cenário”.

Com esses argumentos, opiniões e escondendo informação tomada junto aos entrevistados e eleitores sondados nesta pesquisa, o Sr. Mauro Paulino deveria ser publicamente questionado, pois manipulou, de forma flagrante, em seu comentário, o conjunto de resultados obtidos pela pesquisa e, mais grave, corroborou com uma consulta na qual pelo menos uma de suas perguntas não expressa o que propõe o Estatuto da Igualdade Racial.

A proposta de cotas nas universidades, e defendida no Estatuto, não prevê reservas de vagas aos candidatos negros “independentemente das notas obtidas no vestibular em relação aos que não são negros e descendentes de negros” como apresenta o Instituto Datafolha. Portanto, antes de mencionar a necessidade de debater conceito e almejar, pela manipulação, posicionamento dos brasileiros sobre a questão, as pesquisas deverão dar tratamento justo e ético aos entrevistados e aos receptores de seus resultados, principalmente nos meios de comunicação.

Os receios do Instituto e da Folha de S. Paulo – o perfil incontestável da aceitação das cotas
O problema do Instituto Datafolha e Folha de S. Paulo é que eles sabem que será dificílimo reverter a impressionante e acachapante tendência favorável às cotas nas universidades e mercado de trabalho. Para o caso das cotas nas universidades, excetuando o grupo de pessoas com renda familiar superior a dez salários mínimos (2% da população) e com formação universitária, todos os perfis analisados pelo Datafolha demonstram maioria a favor das cotas. O Instituto revirou o perfil dos entrevistados, literalmente, pelo avesso: cor, sexo, idade, escolaridade, renda familiar, ocupação, religião, região do país na qual vive hoje, preferência partidária, avaliação do governo Lula, voto declarado para presidente no segundo turno de 2002 – em todas essas situações (recortes) o resultado foi favorável às cotas para negros nas universidades, todas! E em muitos casos, a posição favorável, percebe-se, é irreversível, chegando a percentuais superiores a 70%. Então, durmam com um barulho desses!

Sexo, Cor, Idade e Escolaridade – Perfis básicos das posições favoráveis
Homens e mulheres têm percentuais quase idênticos em sua posição favorável às cotas para negros nas universidades – com uma ligeira posição mais avançada das mulheres: 66% dos homens são a favor, 26% contra e 8% são indiferentes ou não sabem; entre as mulheres, 69% são a favor, 24 são contra e 10% são indiferentes ou não sabem ou não.

Entre as pessoas que se declararam brancas 62% são favoráveis às cotas para negros nas universidades nos termos apresentados pelo Datafolha, e apenas 31% são contra, 8% são indiferentes ou não sabem. Como nas pesquisas do IBGE também aqui as opções disponíveis para a população afro-descendente em relação à cor são as clássicas “preto e pardo”. Então, entre os autodeclarados pretos, 69% são a favor, 22% contra e 9% são indiferentes ou não sabem. Entre os pardos, 67% são a favor, 22% contra e 11% são indiferentes ou não sabem. Entre os que se declararam indígenas, tem-se o maior percentual de favoráveis às cotas, 77% e contra, apenas, 16%, os indiferentes e os que não sabem são 7%. Entre os amarelos, o grupo mais escolarizado no conjunto da população brasileira, outra grande surpresa, 66% são a favor, 27% contra e 7% são indiferentes ou não sabem.

Esses números são excelentes contra-argumentos para aqueles que insistem em afirmar que as cotas dividirão o país. Não é isso, exatamente, o que pensam os brancos, afro-descendentes, indígenas e população de origem asiática do país – todos, rigorosamente, todos exibem posição favorável superior ou próxima à média nacional de 65%. Ou seja, sob este aspecto, cor da população, a consistência do resultado nacional é inconteste. E, é bom sublinhar, a posição contraria uma visível minoria.

No que diz respeito a opiniões segundo faixas etárias, importa mencionar que os jovens entre 16 e 24 anos ultrapassam a média nacional de favoráveis em 1%. Nessa faixa etária, 66% são favoráveis às cotas para negros nas universidades, 27% são contra e 7% são indiferentes ou não sabem. Na faixa etária entre 25 e 34 anos, 67% são a favor, 26% são contra e 7% são indiferentes ou não sabem. Ou seja, os jovens e o grupo etário que lhes segue imediatamente demonstram perfis de aceitação praticamente idênticos.

Finalmente, os dados relacionados à escolaridade dos entrevistados.
A Folha de S. Paulo tentou relacionar a posição favorável às cotas como uma preferência de pobres e sem escolaridade e “decreta”: “A maior taxa de aprovação das cotas raciais ocorre entre as pessoas com escolaridade fundamental (71%). Já entre os entrevistados com nível superior acontece uma inversão: 55% são contra as cotas raciais.” Neste caso, inversão seria ter, entre os entrevistados com nível superior, 71% de contrários às cotas. Os 55% contra as cotas são, na realidade estatística, os menos favoráveis – o fato é que, neste grupo, 42% são a favor, 4% são indiferentes ou não sabem e eles, os de nivel superior, representam apenas 13,5% da amostra de pessoas entrevistadas. Não tem nada a ver com a maioria expressiva do grupo com escolaridade fundamental favorável às cotas e cuja presença de contrários é de apenas 16%.

Para completar, é importante que se registre uma outra importante e deslavada omissão: a posição dos entrevistados com escolaridade média, a rigor, os mais interessados no assunto e de peso amostral muito próximo ao grupo com escolaridade fundamental. Muito bem, entre o grupo com escolaridade média 65% são favoráveis às cotas, 30% são contra e 5% são indiferentes ou não sabem. Conclusão, unindo as opiniões favoráveis do grupo de escolaridade fundamental e média tem-se uma concordância de sólida relevância estatística.

O jogo duro e sujo
Os ativistas em favor das políticas de ação afirmativa – eu creio - nunca imaginaram que este assunto fosse algo leve de enfrentar. A pesquisa do Instituto Datafolha com a seleção de perguntas elaboradas, os comentários de seu Diretor Geral à Folha de S. Paulo e o conjunto de matérias que este veículo fez circular na sua edição de 23 de julho demonstram que o jogo será duríssimo de enfrentar. O jogo será duro e sujo porque a intenção será buscar as contradições nas opiniões. Daí a introdução, não por acaso, de seis (!) frases sobre as quais os entrevistados deveriam demonstrar o seu grau de concordância, discordância e neutralidade (nem concordância nem discordância). A concordância e a discordância deveriam ser ainda ser qualificadas com “concorda totalmente”, “concorda em parte”, “discorda totalmente” e “discorda em parte”. Ou seja, a segunda parte da estratégia de virar pelo avesso o eleitorado e a opinião pública nacional.

Foi justamente deste conjunto de frases que se chegou à conclusão de que é possível, como textualmente menciona o Instituto Datafolha, que “o debate seja deslocado da questão racial para a social”. Foi a partir da aferição sobre o grau de concordância ou discordância sobre essas frases que se permitiu afirmar que 87% dos entrevistados concordam que “deveriam ser criadas cotas nas universidades para pessoas pobres e de baixa renda, independente da raça” – e isso a despeito de 65% dos entrevistados terem se declarado a favor das cotas para negros na universidade, a partir de uma pergunta direta com opções de respostas igualmente diretas nesta mesma pesquisa!

De toda sorte, o que eles também perguntaram e omitiram em sua análise foram as opiniões relacionadas a princípios que, para nós, os ativistas, fundamentam a exigência de reparação pelos danos causados por mais de 350 anos de escravidão e nenhuma política de proteção ou promoção da população liberta em 13 de maio de 1888.

O Instituto Datafolha apresentou a seguinte frase para avaliação dos entrevistados: “As cotas nas universidades são necessárias porque os negros foram escravizados e merecem ser compensados por isso” . E assim ficamos sabendo que 54% dos entrevistados concordam com essa colocação, 37% discorda e 9% nem concorda e nem discorda. Entre os que se declaram brancos, 51% concordam, 41% discordam e 8% nem concorda e nem discorda. Entre os pretos 56% concordam, 35% discordam e 9% são indiferentes. Entre os pardos 57% concordam, 34% discordam e 9% também são indiferentes. Entre os indígenas, mais uma vez uma maioria expressiva, 65% concordam e apenas 27% discordam, os indiferentes são 8%. E, finalmente, entre os entrevistados de origem asiática 61% concordam, 38% discordam e, como os indígenas, apenas 8% são indiferentes. O jogo será mesmo duríssimo e sujo, também.

O Instituto Datafolha ouviu 6.264 eleitores, a partir de 16 anos de idade, nos dias 17 e 18 de julho, em 272 municípios. E, segundo informam, a margem de erro máxima, para o total da amostra, é de dois pontos percentuais, para mais ou para menos. A íntegra da pesquisa podia, até o dia 30 de julho de 2006, ser acessada na página web do Datafolha.

Fonte: Irohin Online

Nenhum comentário: