Páginas

sábado, 27 de maio de 2006

Sua Excelência: a criminalidade

Ainda impactada pelos últimos acontecimentos em São Paulo, a sociedade brasileira começa a sair do estado de choque e a discutir possibilidades e alternativas de combate à criminalidade e à letargia da classe política. Efetivamente, o que percebemos em São Paulo nos últimos dias, além de assustador e inaceitável sob todos os aspectos, foi a falência do Estado brasileiro no que tange, principalmente, à questão da segurança pública.

A naturalização da existência de organizações criminosas, o reconhecimento a determinados “líderes”, a boçal tentativa de bloquear celulares nas cadeias (quando, na verdade, o mais lógico seria atuar para que os mesmos não entrassem no sistema prisional), entre outras ações, afirmam a premissa acima. E, o que é pior, nos deixa, a todos e a todas, cidadãos e cidadãs brasileiros(as), temerosos(as) do que está por vir. Tendo a criminalidade percebido esta fragilidade, poderá se aproveitar disso para empreender medidas mais ousadas.

Há muito tempo, o Brasil deixou a questão da segurança pública em segundo plano. Não é de hoje que há certa condescendência com algum tipo de transgressão, o que só leva, como podemos ver atualmente, a uma situação de absoluta promiscuidade. Vale lembrar que nos anos de 1970, ao resolver combater o jogo do bicho, o Exército Brasileiro perdeu um de seus oficiais para aqueles que deveriam ser combatidos. O Capitão Guimarães bandeou-se para o lado dos bicheiros e, hoje, é um de seus mais fortes representantes, além de presidente da Liga de Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

Nos anos de 1990, por conta das malogradas intervenções do Exército na cidade do Rio de Janeiro, se viu o recrudescimento do tráfico de drogas e a total incapacidade do aparelho policial de se modernizar e atuar preventivamente no combate a este tipo de criminalidade.

Por outro lado, como dizia o delegado Helio Luz, a Zona Sul do Rio sempre brilhou a noite. Isto, na gíria policial, quer dizer que a classe média bronzeada, residente à beira-mar, sempre cheirou sua cocaína e fumou sua maconha sem grandes problemas. Hoje, não dá para deixar de concordar que a engrenagem que tem numa ponta o(a) consumidor(a) e na outra o traficante é banhada em sangue, corrupção e esfacelamento da sociedade como um todo.

Portanto, antes de qualquer coisa, é fundamental que haja mudança cultural com relação à concepção que a sociedade brasileira tem sobre o que é criminoso e o que não é. Ao aceitar como natural dar R$ 20 para a cervejinha do policial porque a documentação do carro está atrasada, estamos, de uma forma ou de outra, incentivando que amanhã ele negocie a liberação de um traficante por R$ 20, 50 mil. A mesma polícia que é condenada por todos(as) por conta de sua corrupção é o tempo todo corrompida pelas mesmas pessoas que a condenam. E aí alguns dirão: “ah, mas é diferente!” Não é diferente, e isto precisa ser mudado.

Não há dúvida de que o aparelho policial precisa ser modificado. Não tem sentido haver Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal, Força Nacional de Segurança e, em alguns municípios, Guarda Municipal, ao mesmo tempo em que a insegurança está presente em todos os grandes centros brasileiros.

Por outro lado, a cultura da impunidade tem que ser combatida sem dó nem piedade. Para isso, é fundamental modificar os códigos legais do país que estão desatualizados; nem acompanham o desenvolvimento da sociedade, nem estão preparados para combater as novas formas de criminalidade. Um jovem sem perspectiva de futuro, sem formação escolar e profissional, que vê, cotidianamente, criminosos de colarinho branco serem beneficiados por leis que parecem feitas sob medida para eles, em algum momento pensará que também poderá se beneficiar dos artifícios legais. Aí o estrago já está feito.

O presidente Lula foi à TV dizer que o problema é que não foram feitos investimentos na educação nas últimas décadas e que, por causa disso, a sociedade colhe os frutos do que plantou. Este raciocínio, se em um primeiro momento tem sentido e apelo, embute em si uma lógica determinista que é a de que os(as) pobres precisam ser resgatados(as) do seu destino natural que é delinqüir.

Ora, se todos(as) os pobres deste país que não tiveram acesso à educação se tornassem criminosos, estaríamos vivendo uma situação muito pior do que a que estamos neste momento. É inaceitável, portanto, que esta lógica reducionista seja aplicada como verdade absoluta. É como as várias ações bem-intencionadas voltadas para jovens favelados e periféricos que traz o determinismo da criminalidade latente dentro de si.

Exemplo disso é um trabalho feito com muita seriedade há alguns anos no Rio, mas que tem um nome que diz tudo: “Dançando para não dançar”. Ora, por quê? Se não dançar, dança? Se não dançar, automaticamente, cairá na criminalidade? Se não tocar tambor, se não fizer teatro, se não praticar esportes sobrará apenas a opção da criminalidade? Há um problema sério com esta concepção e ela precisa ser revista e discutida com a devida seriedade.

Logicamente, educação é base, mas não resolve tudo. Se assim fosse, pessoas como Susane Richtofen, o juiz Nicolau e o banqueiro Cacciola não seriam o que são: criminosos da pior qualidade que mataram, roubaram, corromperam e estão usufruindo das benesses da lei. A educação tem que vir com um pacote. A questão (e isso precisa ser entendido pela nossa classe política) é estrutural e não tão somente pontual. O Brasil não combate os problemas estruturais, fica apenas na lógica de tapar buracos. E essa lógica tem se mostrado cada vez mais ineficaz.

O fato é que o país está à beira da implosão. E não se trata de uma implosão provocada por uma convulsão social com viés revolucionário. Mas, diante da fragilidade do Estado, o que estamos testemunhando é que Vossa Excelência, a criminalidade, está ocupando paulatinamente o papel que deveria ser do Estado.

A justiça praticada por bandidos é rápida e eficiente (pelo menos para aqueles que vivem sob seu jugo). Ao não combater a criminalidade como se deve no Rio de Janeiro, abre-se espaço para o surgimento de grupos de extermínio que estão dominando favelas na Zona Oeste do Rio e vendendo “proteção” a preços exorbitantes a moradores e comerciantes locais. Estamos chegando a um limite perigoso em que o Estado de Direito está sendo engolido por uma forma alternativa que fatalmente levará a sociedade a um colapso.

O fato de a classe política brasileira estar totalmente desacreditada e não vermos o surgimento de novas lideranças políticas que tragam respostas efetivas à demanda da população aponta, infelizmente, para a busca de outras alternativas e, diante de uma população pouco politizada e pouco instruída, estamos caminhando a passos largos para o abismo.

Há que se construir grandes acordos. É chegada a hora de homens e mulheres de grandeza de espírito assumirem a condução do debate político não de forma mesquinha, para disputar uma eleição ou outra. Mas, efetivamente, para se construir um projeto político para o país que atravesse gerações e ponha o Brasil numa posição favorável diante das outras nações do planeta.

Países como Irlanda, Índia e Chile conseguiram, em poucas décadas, sair do atraso e tornarem-se países com nível de desenvolvimento minimamente razoável. É chegada a hora de o Brasil fazer o mesmo. O grande desafio é saber como. E é a isto que a sociedade precisa responder, sem esperar que surjam Messias para nos darem as respostas que nós mesmos precisamos buscar.

Fonte: Portal do Ibase. Publicado em 26/05/2006.

Nenhum comentário: